segunda-feira, 25 de maio de 2009

DISFUNÇÃO


Manoel de Barros

DISFUNÇÃO


Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de a menos
Sendo que cós mais justo seria o de ter um parafuso trocado do que a menos
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa disfunção lírica
Nomearei abaixo 7 sintomas desta disfunção lírica.
! – Aceitação da inércia para dar movimento às palavras.
2 – Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 – Percepção de contigüidades anômalas entre verbos e substantivos.
4 – Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.
5 – Amor por seres desimportantes tanto como pelas coisas desimportantes.
6 – Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra.
7 – Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais importância
aos passarinhos do que aos senadores.

Manoel de Barros
A DISFUNÇÃO


Neste texto, Manoel de Barros enumera as características de sua poética, que, em boa parte, são também uma definição da poesia de um modo geral.
O prefixo des, indicando negação, já elucida que o poeta elegeu a inversão como instrumental literário preferido, daí inércia-movimento, formato de canto-asperezas de pedra, comparecer-desencontrar...
Poesia é que se desvia da linguagem objetiva, referencial, o que busca a “contigüidade anômala” ou o “casamento incestuoso”, o que privilegia os “mistérios irracionais”, em detrimento do senso comum, do pensamento linear e previsível.
Basta ler os poemas de Manoel de Barros para comprovar estes princípios simples e fundamentais, que ele aplica com tal regularidade, que construiu uma das obras poeticamente mais coerentes e organizadas de nossa literatura.
Sua organização pode muitas vezes não ser percebida, por não ter uma estrutura formal tão evidente, como ocorre com João Cabral. Trata-se de uma organicidade na construção de imagens, com a utilização freqüente das antíteses (e às vezes do paradoxo), como forma de criar a inversão na enunciação poética.
Reparemos que, tematicamente, o autor também opta por esta quebra da expectativa e declara “amor pelos seres e coisas desimportantes”. Em um poema, ele nos diz:”Aprendo com abelhas do que com aeroplanos”. Ou seja, as abelhas (natureza) são mais valorizadas do que os
aeroplanos (cultura), o que não ocorreria em uma sociedade tecnológica como a nossa.
Não só em Manoel de Barros, mas em muitos outros poetas, verificamos que o “momento poético” se dá justamente na inversão operada pela linguagem, o traço de – posto antes do uso utilitário da palavra.

Um comentário:

  1. Comparecer ao próprio desencontro... interessante os sintomas de disfunção lírica...

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