segunda-feira, 11 de maio de 2009

POÉTICA





Manuel Bandeira

Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor

Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo

Abaixo os puristas

Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis

Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo

De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres,etc.

Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbados
O lirismo difícil e pungente dos bêbados
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.




Este é um clássico do Modernismo, leitura obrigatória para a compreensão da fase inicial, em que a negação prevalecia sobre a construção. A propósito, a literatura de 20 se marcou pelo signo da ruptura, muito mais do que as gerações posteriores, tanto que todas elas têm uma dívida para com as mudanças e conquistas deste primeiro modernismo.
O “estou farto” tem um tom agressivo que lembra o Ode ao burguês de Mário de Andrade. E, se por um lado, enumera, o que literariamente deve ser evitado: o lirismo piegas, previsível, repetitivo. Por outro, enumera também as qualidades do lirismo desejado: ousadia, diversidade, espírito libertário.
As comparações do lirismo com funcionário público (aqui no mau sentido do termo) e contabilidade, tabela de co-senos evidenciam a existência de um poesia burocratizada, obediente a fórmulas e fôrmas, contra a qual o Modernismo se manifestou.
Na parte final, o poeta mostra nas figuras do louco, do bêbado e do clown a imagem de uma literatura que foge à razão, às regras e às convenções. Ou seja, a tudo que se opõe à libertação.
Esta libertação, sem querer fazer jogo de palavras, não se obtém simplesmente pela adoção do verso livre, que caracterizou este momento de oposição ao Parnasianismo. Mais tarde vimos que muitos poemas com versos livres eram mais “antigos” do que outros com versos metrificados.
Logo a libertação almejada por Bandeira era mais ampla e mais complexa do que uma opção formal. O poeta não fala do fim do lirismo (como de fato não poderia acontecer), mas de sua renovação, sem os ranços românticos e parnasianos. O lirismo de 20 não se queria mais cópia com as cartas feitas segundo modelos; queira-se múltiplo, diverso, autoral.

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