segunda-feira, 11 de maio de 2009


ANTIODE
(CONTRA A POESIA DITA PROFUNDA)

João Cabral de Melo Neto

Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,

gerando cogumelo
(raros, frágeis, cogu-
melos ) no úmido
calor de nossa boca.

Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie

extinta de flor,flor,
não de todo flor.
mas flor, bolha
aberta no maduro).

Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.

Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.

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A palavra flor pode ser vista como um signo romântico gasto em não sei quantas metáforas e comparações, ou como um símbolo da natureza, da delicadeza, da afetividade etc. É claro que em poesia há muito tempo é difícil o uso desta palavra, sem se cair no lugar-comum, na associação óbvia. Já em letras de música ela ainda aparece com certa regularidade, apesar de padecer do mesmo estigma.
Aqui Cabral a emprega justamente para mostrar que a poesia talvez seja mais “fezes” do que “flor”, o que incomoda o leitor mais ingênuo, surpreso com a palavra fezes em um poema. E, o que é grave, em um poema extremamente sério. O poeta no caso explora outras significações e associações feitas com flor, como o uso de estrume (fezes) para o seu adubo.
Este poema, que se diz contra a “poesia dita profunda”, apresenta outro tipo de profundidade, não a pretensa profundidade da poesia grandiloquente, com dó de peito e gran finale, mas a profundidade da reflexão madura sobre o fazer poético. Curiosamente, Cabral não foi um escritor que tenha aderido ao prosaico e ao coloquialismo do Modernismo,isto é, sempre teve uma postura mais formal, ou, se quiserem, mais profunda.
Seja lá como for, vale aqui pensar sobre a necessidade de não se equiparar a poesia à flor, em uma visão distorcida e pueril do que seja poesia. Para leigos, a palavra poesia ainda traz a lembrança de coisas amenas, de comparações com natureza, de “delicadezas”, e de atitudes culturalmente “femininas”. Sem dúvida, estes leigos (e não são poucos) ainda nem leram Augusto dos Anjos e seus Versos ìntimos. Imagine se alguém escreveria “escarra nesta boca que te beija’?
Há ainda quem olhe para o poeta como um nefelibata, um desocupado que se faz jardineiro de flores adolescentes em poemas idem, e para a poesia como “perfumaria”, coisa fútil, alheia às questões fundamentais da realidade.
O poeta suja as mãos, ou a pena, nas fezes, ou no adubo, para mostrar de que matéria é feita a poesia. Em outras palavras, para mostrar que não existe material não poético.


Um comentário:

  1. Bacana o contraste de poéticas. Mais bacana só se viesse com um toque teu. Mas colocá-los junto já é um toque.

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