domingo, 20 de setembro de 2009

O BANQUETE DOS ANJOS, LIVRO DE CONTOS DE REGINA VIEIRA


PARA SER LIDO NAS CLASSES


O livro Banquete de anjos de Regina Vieira segue a linha da narrativa-depoimento que, no ano passado, consagrou o Filho Eterno, de Cristovão Tezza. Na apresentação, a autora coloca a questão, esclarecendo que, ainda que todas as histórias narradas tenham sido “baseadas em fatos reais”, foram às vezes retrabalhadas com intuito literário. Talvez o melhor exemplo seja a história Santa Maria Margarida, com a alternância do ponto de vista narrativo e a elaboração dos desfechos em toda a obra.
Explicitamente autobiográfico e confessional, o livro tem propósitos outros que não o de reunir contos sobre escola, só para usar um título machadiano. A autora é clara: quer fazer uma denúncia social, mostrar o quadro da educação municipal na cidade do Rio de Janeiro, de 1974 a 1992. Um quadro que, diga-se a bem da verdade, permanece o mesmo, embora os cargos de prefeito e de secretário de educação tenham sido ocupados por políticos e técnicos distintos.
Quem conhece a situação do ensino no país, e não só em nossa cidade, nas últimas décadas, não se surpreenderá com o livro. A surpresa, nossa e do leitor, é a de que os governos, que se sucederam neste período, não tiveram a iniciativa, nem ao menos a intenção, de reverter este quadro. Só para exemplificar o tratamento dado à Educação, um dos últimos prefeitos da cidade, dirigindo-se aos professores, disse: ”Vocês fingem que trabalham e eu finjo que pago os salários.” A frase debochada, por mais surreal que pareça, é verídica.
Na última eleição para prefeito da cidade, nenhum candidato sabia exatamente o salário do professor, mas todos sabiam (pelo menos declaravam) que finalmente resgatariam a qualidade do ensino municipal. Como conseguiriam dar o tal ensino de qualidade, sem salário de qualidade, é um mistério ou apenas uma resposta viciada e automatizada.
Este livro é, portanto, o relato de uma professora que, durante 18 anos, ministrou aulas aos alunos da rede municipal, da zona sul à zona rural. É o depoimento de quem trabalhou em salas de aula de colégios muitas vezes abandonados e com insuficientes condições de funcionamento, não o de um político que, em seu gabinete com ar refrigerado, se mantém distante dos inúmeros problemas do exercício do magistério.
As histórias mostram fatos corriqueiros no dia a dia das escolas: indisciplina, falta de educação, desrespeito, reprovações em quantidade, alunos sem amparo, famílias desestruturadas, pobreza, alcoolismo, violência, tóxico, desinteresse pelo estudo, baixos salários, falta de funcionários, instalações precárias, abandono social, discriminação sócio-econômica, exclusão cultural, choque de classes, crises e angústias de adolescentes etc
Sim, a lista parece ser infinita e é bastante familiar para quem, como nós, também exerceu o magistério. Também não é estranha para qualquer funcionário das inúmeras secretarias de Educação das décadas retratadas. No entanto, parece que tanto os professores municipais, normalmente de classe média, quanto os alunos, de classe média ou, predominantemente, baixa, não merecem o respeito das políticas educacionais. Nos discursos das autoridades, ouvimos um subtexto:”Quem quiser ensino de qualidade, que vá para uma escola particular cara; e quem quiser salário digno, que procure outra profissão, que não seja a de professor.”
Regina Vieira não tem intenções de socióloga ou pedagoga, não quer fazer uma análise técnica das questões da educação municipal. Até poderia, ainda que não tenha a formação acadêmica das especialidades acima citadas. É professora de português e atriz e tem, portanto, capacidade de observação e de análise crítica, além do domínio da linguagem. Isto sem nos referirmos aos 18 anos de “pesquisa e estudo de campo”. Mas, sendo também escritora, optou por fazer um relato que abre mão da abordagem estritamente social para humanizar cada uma de suas histórias.
Aqui os colegas, os alunos e seus familiares se transformam em personagens e são individualizados. Não são alunos, mas Sílvia, João Batista, Carlos Alberto, Neusa, José Ricardo, Gislaine, Lídia, Lúcia,Washington, Sergio Manoel, Carla, Ruth, Francis, Rita de Cássia. Cíntia, Márcio...
Todos merecem uma descrição e são vistos em sua individualidade. Como melhor exemplo, temos o caso das gêmeas Lídia e Lúcia que se mostraram gratas por serem identificadas por Regina, o que nem sempre acontecia por parte de outros professores. Ser tratado pelo nome é o primeiro passo para o reconhecimento da identidade, especialmente quando se trata de alunos que são vistos como “estudos de caso”.
O que diferencia este livro é a humanização de seus personagens: professores e alunos são mostrados sem idealização. A própria autora se expõe em algumas situações, reconhecendo seus erros como profissional, erros que ocorrem em consequência do estresse de um ofício que lida com material humano, e não com pastas repletas de papéis ou cds lotados de arquivos.
A aproximação do olhar do narrador faz com que, nós leitores, nos aproximemos também dos alunos e tenhamos por eles, independente de serem mal-educados ou negligentes, um olhar igualmente afetivo. Finda a leitura, há um gosto incômodo de revolta. Sabemos que as histórias de João Batista e de Gislaine estão se repetindo neste exato momento, sem qualquer perspectiva. A educação no país, e não só no município do Rio de Janeiro, nos lembra da obra de Gabriel Garcia Marques – Crônica da morte anunciada. No caso, é a esperança de milhares de crianças e adolescentes que morre diariamente sem que os governos façam alguma coisa para impedir.
O livro-depoimento de Regina Vieira, diário retrospectivo de sua vida como regente de turma, é um documento literário e histórico e poderia ter sido escrito por qualquer professor do ensino público, desde que ele tivesse o compromisso com o seu semelhante e a inquietação humanista. Esta confissão de vida, para lembramos Neruda, não é um simples desabafo de uma professora demissionária. Antes, é um libelo a favor de uma infância e uma juventude que merecem ser nomeadas e tratadas como indivíduos, e não como números estatísticos de forjadas aprovações automáticas.
Entre outros méritos, este livro tem o de oferecer vasto material para reflexão e discussão. Mas, por ora, fiquemos só com uma pergunta e seu desdobramento: Que filosofia educacional é essa que afasta não só os alunos, mas também os professores das salas de aula? Que escolas são esses que fazem com que seus professores e alunos as abandonem? Que cidade é essa que exila seus cidadãos dentro de seu próprio território?



Marcus Vinicius Quiroga

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